Nem sempre uma revolução acontece com armas e golpes!
Em 1988, podemos dizer que o nosso país foi palco de uma revolução: a revolução para os bichos, quando a nossa Constituição Federal foi aprovada e com ela um artigo que prevê a proibição de práticas cruéis contra os animais, de ações que possam colocar em risco a função ecológica da fauna silvestre ou levar espécies a extinção.
Foto: Vaquejada
Esta previsão legal retirou a proteção dos animais do campo ideológico e elevou para uma proteção de direitos animais, confirmando a condição de sujeito-de-direitos para todos os animais, domésticos, domesticados, silvestres, nativos ou exóticos (animais que são trazidos de outros países). Na Constituição Federal constam, portanto, três direitos fundamentais para os animais: direito fundamental ao tratamento livre de crueldade, direito fundamental a perpetuação da espécie e direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado*.
Hoje falaremos sobre o direito fundamental ao tratamento sem crueldade, os demais direitos abordaremos nas próximas colunas.
Na interpretação de uma lei devemos buscar o sentido de suas expressões, assim conseguimos garantir a sua eficácia no dia a dia. No caso do direito animal ao tratamento livre de crueldade, o legislador não apresentou uma definição para “crueldade”, o que nos leva a elaborar o seu entendimento usando leis, decisões judiciais e outras fontes. Segundo o dicionário Aurélio temos: qualidade de cruel; Ato próprio de pessoa cruel; Desumanidade; Barbaridade; Excessivo rigor. Na Lei 9.605, conhecida como a Lei dos Crimes Ambientais, maltratar animais, ferir, mutilar ou praticar ato de abuso é considerado crime, justamente, por representar crueldade para os animais.
Conforme o Superior Tribunal de Justiça ao julgar o encarceramento de animais de circo, assim concluiu: "A condenação dos atos cruéis não possui origem na necessidade de equilíbrio ambiental, mas sim no reconhecimento de que são dotados de estrutura orgânica que lhes permite sofrer e sentir dor".(STJ, Resp 1.115.916, Rel. Ministro Humberto Martins).
Até aqui já podemos sugerir um entendimento legal para crueldade: qualquer ato ou prática que imponha aos animais dor física ou psicológica, que pode ser ferir um animal, abusar de suas capacidades impondo-lhes atos que são contrários a sua natureza, causar-lhe medo, estresse, vergonha.
A partir desse sentido, abrem-se dois tipos de práticas cruéis: a direta e a intrínseca. A direta é fácil de entendermos, por exemplo uma pessoa chuta um cachorro, a intenção de causar sofrimento é a finalidade do ato praticado. Este animal sofrerá da mesma forma que nós seres humanos, já que tem capacidade para sentir a dor física provocada pelo golpe, e a dor psíquica provocada pelo medo da agressão sofrida. Já a crueldade intrínseca é aquela que está presente não na finalidade do ato ou da prática, mas ela é identificada no modo como o ato ou a prática ocorrem, por exemplo na vaquejada, evento no qual uma dupla de vaqueiros perseguem um bovino e o puxam pelo rabo com o objetivo de jogá-lo no chão, marcando pontos.
Por certo, quem pratica a vaqueja não tem o objetivo de causar sofrimento ao bovino mas, apenas, praticar o que consideram uma competição. No entanto, para que esta “competição” ocorra, o animal será exposto ao medo da perseguição e a dor da queda, que muitas vezes ocorre após a fratura do rabo do animal. Outros exemplos de crueldade intrínseca: o rodeio, a rinha de cães e galos, a farra do boi, o circo, parques aquáticos com golfinhos e baleias, entre outras.
Conforme o Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ação que pedia a proibição da vaquejada por violar o direito animal ao tratamento sem crueldade, assim escreveu: “(…) a crueldade intrínseca à vaquejada não permite a prevalência do valor cultural como resultado desejado pelo sistema de direitos fundamentais da Carta de 1988 (...).”
Por fim, da mesma forma que temos na Constituição Federal os direitos humanos, temos também os direitos animais, consolidando um sistema de proteção a estes seres - vulneráveis frente a nossa espécie. Em termos práticos, significa que um animal não necessita da nossa piedade, compaixão ou mesmo amor para ser respeitado, desde 1988 esse respeito é uma questão legal!
* Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.
§1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
(…)
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
(…) (Constituição Federal de 1988)
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